16/08/2008

Brasileiro conquista a primeira medalha dourada do país na natação

César Cielo Filho, touca cinza e óculos nas mãos, esperava na sala de aquecimento quando aquele sujeito de tronco desproporcional veio caminhando na sua direção de agasalho e medalha no peito. - Tá vendo isso aqui? - disse Michael Phelps - Foi por um centésimo. “Isso aqui”, no caso, era a medalha de ouro, a sétima de Phelps em Pequim, 13ª da carreira olímpica do fenômeno americano. Exatamente 13 medalhas de ouro a mais do que o Brasil tinha em 68 anos de natação nos Jogos.

César Cielo chegou à raia quatro com o peso de um país nas costas. O maiô grudadíssimo no corpo, o nervosismo diluído em tapas. O muito doido Césão ganharia ou perderia em frações. Os outros nadadores, todos, tocaram na água da piscina. Ele não. Estava absolutamente concentrado. - Você pode ganhar por um centésimo. Ou perder por um centésimo - disse Michael Phelps. O Brasil é capaz de comemorar décimos lugares, de beijar com ênfase medalhas de bronze. E não é por acaso. Entre o Oiapoque e o Chuí, ouro é minério olímpico escasso. Até ontem eram apenas 17 as medalhas douradas em verde-e-amarelo - desde a primeira, conquistada por Guilherme Paraense no tiro, em 1932. A número 18 estava por vir. Rápido. Muito rápido.

Foram 34 braçadas. Nenhuma respiração. Nos primeiros metros, Cielo pareceu estar atrás dos franceses Alain Bernard e Amaury Leveaux. No meio da prova, na eternidade daqueles dez segundos iniciais, era impossível dizer quem liderava. Seria Eamon Sullivan, o recordista mundial australiano? Ou o sul-africano Roland Schoeman?

Aquele mar de potentes braçadas e pernas batendo... misturava espuma e angústia. Nas arquibancadas, CÉSÃO se angustiava. CÉSÃO era, na verdade, uma fila de cinco pessoas formando um acróstico humano e elétrico. O “C”, ou César Cielo pai abraçava o “E”, Flávia, mãe, que balbuciava. - Vai, vai... O S (Raísa, amiga da família), o à (Matheus, outro amigo) e o O, a irmã Fernanda... se comprimiam. Os últimos metros estavam ali da piscina, logo à frente do CÉSÃO humano. A uns doze metros do fim, Cielo botou um braço na frente. A câmera subaquática captou num ângulo fugaz os dentes dentro de sua imensa boca aberta. Foi como se mostrasse o apetite olímpico do país inteiro. Cielo estava realmente na frente. A fração de liderança empurrou o berro de torcedores, locutores, tantas gargantas país afora. Faltavam dois metros, um. Veio a trigésima-quarta braçada. Cielo bateu. Uma fração curtíssima precedeu a confirmação eletrônica. O Brasil era campeão olímpico numa piscina. Pela primeira vez. Parecia improvável. Cielo arregalou os olhos dentro dos óculos e olhou para o placar. Viu o número 1 ao lado de seu nome. Vinte e um segundos e trinta centésimos - novo recorde olímpico. Em segundo lugar chegou Leveaux, quinze centésimos atrás (21s45). Em terceiro, Bernard (21s49). O oitavo colocado, o sueco Stefan Nystrand, cravou 21s72, 42 centésimos atrás de Cielo, menos de meio segundo, um piscar de olhos.

O brasileiro berrou. Afundou. Emergiu num grito. Sentou numa das bóias que marcava a raia. Afundou de novo. Sentou na outra, ergueu os dois braços e flexionou os bíceps qual incrível Hulk ou Phelps. Submergiu mais uma vez. Voltou à superfície cuspindo água... e começou a chorar. Seriam as primeiras lágrimas do dia. Devagar ele saiu da piscina, ainda meio incrédulo e muito mais leve. Andava devagar, meio grogue, como se não acreditasse. Ao lado da piscina, a primeira entrevista para o repórter da TV Globo, Marcos Uchoa. - Foi a melhor prova da minha vida. O melhor dia da minha vida.

Novas lágrimas. O segundo choro. Cielo deixou Uchoa e caminhou, algo atordoado, para o vestiário. Vinte minutos mais tarde, ele voltou, recomposto. Esboçou um sorriso. Caminhou firme até o pódio. Viu Alain Bernard receber seu bronze. Amaury Leveaux sorrir com a prata. E então subiu ao degrau mais alto. Recebeu o beijo e o buquê de flores do presidente da Confederação brasileira, Coaracy Nunes. As emoções pareciam sob controle.
Acenou, cruzou as mãos atrás do corpo, respirou fundo. Os acordes do hino brasileiro ecoaram pela primeira vez no Cubo D’Água. Cielo sorriu... ensaiou um “às margens plácidas”... mas no terceiro verso já estava chorando. E chorando copiosamente, emocionando a arquibancada e os dois sorridentes franceses ao seu lado. A cena comoveu o público. Começaram os aplausos. Que ficaram cada vez mais altos. Talvez vissem ali o choro de um garoto, e não o peso de um país nas costas, um país tão carente de medalhas - ou de medalhas de ouro em especial.

O terceiro choro de Cielo se estendeu até depois do hino. Ele deixou o pódio entre abraços, a realidade começando a descer de vez sobre seus ombros. Ele vai até perto da arquibancada e joga as flores que acabara de ganhar para a mãe Flávia. Flores que ela não largou mais. Ele era campeão olímpico, os anos de treino em água gelada, as competições infindas, as dores... tudo tinha valido a pena.

O Cubo d’Água sofreu uma invasão brasileira. Alguns nadadores da delegação quebraram o protocolo. Cercaram Cielo. Abraçaram Cielo. - Césão, Césão, Césão! Gustavo Borges, maior nadador brasileiro até então, invadiu junto. Abraçou longamente o vencedor. De repente, um celular. - Cielo, é pra você. Do outro lado da linha, outro presidente. O presidente da república. Cielo disse um alô assustado. Olhou para a arquibancada. Pegou uma bandeira do Brasil e pôs simbolicamente nas costas. Seu mundo tinha mudado em 21 segundos e 30 centésimos. O mundo da natação no Brasil tinha mudado em 21 segundos e 30 centésimos. A medalha de ouro brasileira em Pequim tinha deixado de ser um sonho. Em 21 segundos e trinta centésimos. Cielo ainda choraria mais duas vezes. A quarta na entrevista coletiva. A quinta - uma hora e meia depois da prova, ao encontrar a família. O primeiro abraço foi no pai. O segundo, na mãe, durou longos 30 segundos. E terminou em lágrimas. Flávia tocou no rosto do filho. E o abraçou de novo, segurando ainda as flores que ganhara após a cerimônia. E então, alguém perguntou: - Cadê a medalha? E César Cielo, então, exibiu o ouro que levava para casa.


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